De repente ele começou a sambar bonito e veio
vindo para mim. Me olhava nos olhos quase sorrindo, uma ruga tensa entre as
sobrancelhas, pedindo confirmação. Confirmei, quase sorrindo também, a boca
gosmenta de tanta cerveja morna, vodca com coca-cola, uísque nacional, gostos
que eu nem identificava mais, passando de mão em mão dentro dos copos de
plástico. Usava uma tanga vermelha e branca, Xangô, pensei, Iansã com purpurina
na cara, Oxaguiã segurando a espada no braço levantado, Ogum Beira-Mar sambando
bonito e bandido. Um movimento que descia feito onda dos quadris pelas coxas,
até os pés, ondulado, então olhava para baixo e o movimento subia outra vez,
onda ao contrário, voltando pela cintura até os ombros. Era então que sacudia a
cabeça olhando para mim, cada vez mais perto.
Eu estava todo suado. Todos estavam suados, mas
eu não via mais ninguém além dele. Eu já o tinha visto antes, não ali. Fazia
tempo, não sabia onde. Eu tinha andado por muitos lugares. Ele tinha um jeito
de quem também tinha andado por muitos lugares. Num desses lugares, quem sabe.
Aqui, ali. Mas não lembraríamos antes de falar, talvez também nem depois. Só
que não havia palavras. havia o movimento, a dança, o suor, os corpos meu e
dele se aproximando mornos, sem querer mais nada além daquele chegar cada vez
mais perto.
Na minha frente, ficamos nos olhando. Eu também
dançava agora, acompanhando o movimento dele. Assim: quadris, coxas, pés, onda
que desce, olhar para baixo, voltando pela cintura até os ombros, onda que
sobe, então sacudir os cabelos molhados, levantar a cabeça e encarar sorrindo.
Ele encostou o peito suado no meu. Tínhamos pêlos, os dois. Os pêlos molhados
se misturavam. Ele estendeu a mão aberta, passou no meu rosto, falou qualquer
coisa. O quê, perguntei. Você é gostoso, ele disse. E não parecia bicha nem
nada: apenas um corpo que por acaso era de homem gostando de outro corpo, o
meu, que por acaso era de homem também. Eu estendi a mão aberta, passei no
rosto dele, falei qualquer coisa. O quê, perguntou. Você é gostoso, eu disse.
Eu era apenas um corpo que por acaso era de homem gostando de outro corpo, o
dele, que por acaso era de homem também.
Eu queria aquele corpo de homem sambando suado
bonito ali na minha frente. Quero você, ele disse. Eu disse quero você também. Mas
quero agora já neste instante imediato, ele disse e eu repeti quase ao mesmo
tempo também, também eu quero. Sorriu mais largo, uns dentes claros. Passou a
mão pela minha barriga. Passei a mão pela barriga dele. Apertou, apertamos. As
nossas carnes duras tinham pêlos na superfície e músculos sob as peles morenas
de sol. Ai-ai, alguém falou em falsete, olha as loucas, e foi embora. Em volta,
olhavam.
Entreaberta, a boca dele veio se aproximando da
minha. Parecia um figo maduro quando a gente faz com a ponta da faca uma cruz
na extremidade mais redonda e rasga devagar a polpa, revelando o interior
rosado cheio de grãos. Você sabia, eu falei, que o figo não é uma fruta mas uma
flor que abre pra dentro. O quê, ele gritou. O figo, repeti, o figo é uma flor.
Mas não tinha importância. Ele enfiou a mão dentro da sunga, tirou duas
bolinhas num envelope metálico. Tomou uma e me estendeu a outra. Não, eu disse,
eu quero minha lucidez de qualquer jeito. Mas estava completamente louco. E
queria, como queria aquela bolinha química quente vinda direto do meio dos
pentelhos dele. Estendi a língua, engoli. Nos empurravam em volta, tentei
protegê-lo com meu corpo, mas ai-ai repetiam empurrando, olha as loucas, vamos
embora daqui, ele disse. E fomos saindo colados pelo meio do salão, a purpurina
da cara dele cintilando no meio dos gritos.
Veados, a gente ainda ouviu, recebendo na cara o
vento frio do mar. A música era só um tumtumtum de pés e tambores batendo. Eu
olhei para cima e mostrei olha lá as Plêiades, só o que eu sabia ver, que nem
raquete de tênis suspensa no céu. Você vai pegar um resfriado, ele falou com a
mão no meu ombro. Foi então que percebi que não usávamos máscara. Lembrei que
tinha lido em algum lugar que a dor é a única emoção que não usa máscara. Não
sentíamos dor, mas aquela emoção daquela hora ali sobre nós, eu nem sei se era
alegria, também não usava máscara. Então pensei devagar que era proibido ou
perigoso não usar máscara, ainda mais no Carnaval.
A mão dele apertou meu ombro. Minha mão apertou a
cintura dele. sentado na areia, ele tirou da sunga mágica um pequeno envelope,
um espelho redondo, uma gilette. Bateu quatro carreiras, cheirou duas, me
estendeu a nota enroladinha de cem. Cheirei fundo, uma em cada narina. Lambeu o
vidro, molhei as gengivas. Joga o espelho no mar pra Iemanjá, me disse. O
espelho brilhou rodando no ar, e enquanto acompanhava o vôo fiquei com medo de
olhar outra vez para ele. Porque se você pisca, quando torna a abrir os olhos o
lindo pode ficar feio. Ou vice-versa. Olha pra mim, ele pediu. E eu olhei.
Brilhávamos, os dois, nos olhando sobre a areia.
Te conheço de algum lugar, cara, ele disse, mas acho que é da minha cabeça
mesmo. Não tem importância, eu falei. Ele falou não fale, depois me abraçou
forte. Bem de perto, olhei a cara dele, que olhada assim não era bonita nem
feia: de poros e pêlos, uma cara de verdade olhando bem de perto a cara de
verdade que era a minha. A língua dele lambeu meu pescoço, minha língua entrou
na orelha dele, depois se misturaram molhadas. Feito dois figos maduros
apertados um contra o outro, as sementes vermelhas chocando-se com um ruído de
dente contra dente.
Tiramos as roupas um do outro, depois rolamos na
areia. Não vou perguntar teu nome, nem tua idade, teu telefone, teu signo ou
endereço, ele disse. O mamilo duro dele na minha boca, a cabeça dura do meu pau
dentro da mão dele. O que você mentir eu acredito, eu disse, que nem na marcha
antiga de Carnaval. A gente foi rolando até onde as ondas quebravam para que a
água lavasse e levasse o suor e a areia e apurpurina dos nossos corpos. A gente
se apertou um conta o outro. A gente queria ficar apertado assim porque nos
completávamos desse jeito, o corpo de um sendo a metade perdida do corpo do
outro. Tão simples, tão clássico. A gente se afastou um pouco, só para ver
melhor como eram bonitos nossos corpos nus de homens estendidos um ao lado do
outro, iluminados pela fodforescência das ondas do mar. Plâncton, ele disse, é
um bicho que brilha quando faz amor.
E brilhamos.
Mas vieram vindo, então, e eram muitos. Foge,
gritei, estendendo o braço. Minha mão agarrou um espaço vazio. O pontapé nas
costas fez com que me levantasse. Ele ficou no chão. Estavam todos em volta.
Ai-ai, gritavam, olha as loucas. Olhando para baixo, vi os olhos dele muito
abertos e sem nenhuma culpa entre as outras caras dos homens. A boca molhada
afundando no meio duma massa escura, o brilho de um dente caído na areia. Quis
tomá-lo pela mão, protegê-lo com meu corpo, mas sem querer estava sozinho e nu
correndo pela areia molhada, os outros todos em volta, muito próximos.
Fechando os olhos então, como um filme contra as
pálpebras, eu conseguia ver três imagens se sobrepondo. Primeiro o corpo suado
dele, sambando, vindo em minha direção. Depois as Plêiades, feito uma raquete
de tênis suspensa no céu lá em cima. E finalmente a queda lenta de um figo
muito maduro, até esborrachar-se contra o chão em mil pedaços sangrentos.