quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Cartas amantes I - Victor

Ibiporã, 28 de Agosto de 2013

Querido Victor


Preciso descrever o que aos poucos me conquista nesta noite, se você é mesmo o primeiro escolhido para quem dedico umas palavras, ou estas pequenas afetuosidades de meu coração e minha boca, é porque já me conquistou aos poucos, porque o pouco que se passou já é muito, e muito tempo sem você não edifica ninguém.
Enquanto pouso meus dedos nas teclas do computador, e acredite, queria muito que estivesse em minha Olivetti línea 98 podendo endereçar isto verdadeiramente à sua casa, através das bondosas mãos de um carteiro, envio a ti minha sentimentalidade, apoiando meus braços ao lado do vinho que costumeiramente bebo no lugar de um sonífero. Percebe, então, que esta carta que escrevo antes de dormir é como um “boa noite”, um repelente dos pesadelos que tive noite passada?
Pois é, a noite anterior foi turbulenta. E nem sempre sei o que fazer nesses momentos, acordo meio desesperado, meio tonto, meio isso, meio aquilo, meio coisa nenhuma como sempre fui. Então só me sobra um caminho para dispersar as más lembranças, os maus pesos; lembrar de você, assim radiante, assim bobo, assim tão belo e exibicionista se formando como um verdadeiro príncipe das histórias que lemos quando criança, ou que pelo menos tu deves ter lido, já que não lemos juntos.
E é então, esse o motivo que primeiro escolho você para essas memórias alheias. Pois você já é um remédio para minhas agonias, sem ser, e um alívio para minhas lembranças ruins, sem ser, sem ser verdadeiramente meu. O fato de lembrar de ti, assim tão disponível, me deduziu a bala de morango ao meu lado junto a boca minha, e o vinho do outro lado, aguardando sei lá o quê?! Pareço ter enjoado dele cedo, por lembrar de você.
E é assim que me sinto, já que me peguei lembrando das suas sardas, e do cabelo ruivo, e dos finos lábios, e até da barba ruiva e macia, tentando apagar o pesadelo, percebi que posso ter desenvolvido um sentimento meio platônico por essa sua singeleza e descontração.
Você se tornou meu remédio sem ser, e isso é amor. (ou não, ou vontade amar, ou desejo, ou um amável desejo).
Pois bem, toda carta deve transmitir uma notícia, acho que já a fiz, já disse que preciso de você aqui do meu ladinho, me ajudando a dedilhar palavras no piano de escritor, rindo de uma bobagem, de um erro, massageando minha coluna cansada de tanto escrever sobre minha vida amarga, que tento adocicar com o vinho e com a bala de morango, símbolo desse amor vivenciado, eliminando a amargura com seu beijo, e com seu carinho, e com seu apoio.
Esse desespero solitário, expressão mais viva e ao mesmo tempo mais fantasiada de amor me constroi, como o ser que sou, e peço perdão se te ofendo, mas pergunto, qual amor pode ofender?
Termino dizendo o que faço, meu último gole de vinho, quase um canto de ninar de Jeff Buckley, “Corpus Christi Carol”, e meu adeus de certeza, tu que não virás nunca, a não ser nos encontros rotineiros que estão ficando mais escassos pelo tempo, pelo aperto de mão tão sonhado que foi uma despedida há uma semana e meia atrás, na busca do dinheiro, (só tu entenderás porque digo isso), e ainda digo, que estas palavras misturadas nas pessoas da língua, do você, do tu, do ele, são um meio de me comunicar mais literário, mais poético, porque se perco isso, nada terei.
Copiando Joyce, digo, Adeus, meu belo anjos dos paraísos do éden, meu querido e amado pássaro silvestre da primavera, com apelidos que te dei na fantasia.


Do seu, (quando quiser) Leandro.

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Nova sessão no blog.

Ibiporã, 26/08/2013.

Caro Leitor,

A partir de hoje, inauguro uma nova sessão aqui no blog. É uma sessão diferente de tudo que já fiz, quero usar músicas, poemas (mesmo que não sejam meus), impressões visuais, e fazer de cada postagem uma pequena obra de arte eletrônica. É uma sessão de cartas, posso garantir que são cartas direcionadas a pessoas reais, mas divulgarei apenas o primeiro nome, e caso este tenha uma grafia muito diferente, enfeitarei-o com uma grafia mais simples e singela, preservando ao endereçado, e a mim mesmo (acima de tudo). Depois da leitura de "Cartas a Nora" de James Joyce, digamos que fiquei bem entusiasmado com a ideia. Já coloquei aqui, em outro momento um video com Caco Ciocler lendo uma das cartas de Joyce. Contudo, a ideia surgiu mesmo após uma carta que enviei a um dos melhores amigos que tenho, e um dos mais desejados carnalmente (sei que ele lerá isso, risos). Fiquei extasiado, com um sentimento novo, daquela busca pela verdade literária que me faltava. Também penso que as cartas podem trazer mais leitores ao blog. 

Penso que você pode ser o próximo.

Aguardem a primeira carta, logo logo.


quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Terça-Feira Gorda - Caio Fernando Abreu

De repente ele começou a sambar bonito e veio vindo para mim. Me olhava nos olhos quase sorrindo, uma ruga tensa entre as sobrancelhas, pedindo confirmação. Confirmei, quase sorrindo também, a boca gosmenta de tanta cerveja morna, vodca com coca-cola, uísque nacional, gostos que eu nem identificava mais, passando de mão em mão dentro dos copos de plástico. Usava uma tanga vermelha e branca, Xangô, pensei, Iansã com purpurina na cara, Oxaguiã segurando a espada no braço levantado, Ogum Beira-Mar sambando bonito e bandido. Um movimento que descia feito onda dos quadris pelas coxas, até os pés, ondulado, então olhava para baixo e o movimento subia outra vez, onda ao contrário, voltando pela cintura até os ombros. Era então que sacudia a cabeça olhando para mim, cada vez mais perto.
Eu estava todo suado. Todos estavam suados, mas eu não via mais ninguém além dele. Eu já o tinha visto antes, não ali. Fazia tempo, não sabia onde. Eu tinha andado por muitos lugares. Ele tinha um jeito de quem também tinha andado por muitos lugares. Num desses lugares, quem sabe. Aqui, ali. Mas não lembraríamos antes de falar, talvez também nem depois. Só que não havia palavras. havia o movimento, a dança, o suor, os corpos meu e dele se aproximando mornos, sem querer mais nada além daquele chegar cada vez mais perto.
Na minha frente, ficamos nos olhando. Eu também dançava agora, acompanhando o movimento dele. Assim: quadris, coxas, pés, onda que desce, olhar para baixo, voltando pela cintura até os ombros, onda que sobe, então sacudir os cabelos molhados, levantar a cabeça e encarar sorrindo. Ele encostou o peito suado no meu. Tínhamos pêlos, os dois. Os pêlos molhados se misturavam. Ele estendeu a mão aberta, passou no meu rosto, falou qualquer coisa. O quê, perguntei. Você é gostoso, ele disse. E não parecia bicha nem nada: apenas um corpo que por acaso era de homem gostando de outro corpo, o meu, que por acaso era de homem também. Eu estendi a mão aberta, passei no rosto dele, falei qualquer coisa. O quê, perguntou. Você é gostoso, eu disse. Eu era apenas um corpo que por acaso era de homem gostando de outro corpo, o dele, que por acaso era de homem também.
Eu queria aquele corpo de homem sambando suado bonito ali na minha frente. Quero você, ele disse. Eu disse quero você também. Mas quero agora já neste instante imediato, ele disse e eu repeti quase ao mesmo tempo também, também eu quero. Sorriu mais largo, uns dentes claros. Passou a mão pela minha barriga. Passei a mão pela barriga dele. Apertou, apertamos. As nossas carnes duras tinham pêlos na superfície e músculos sob as peles morenas de sol. Ai-ai, alguém falou em falsete, olha as loucas, e foi embora. Em volta, olhavam.
Entreaberta, a boca dele veio se aproximando da minha. Parecia um figo maduro quando a gente faz com a ponta da faca uma cruz na extremidade mais redonda e rasga devagar a polpa, revelando o interior rosado cheio de grãos. Você sabia, eu falei, que o figo não é uma fruta mas uma flor que abre pra dentro. O quê, ele gritou. O figo, repeti, o figo é uma flor. Mas não tinha importância. Ele enfiou a mão dentro da sunga, tirou duas bolinhas num envelope metálico. Tomou uma e me estendeu a outra. Não, eu disse, eu quero minha lucidez de qualquer jeito. Mas estava completamente louco. E queria, como queria aquela bolinha química quente vinda direto do meio dos pentelhos dele. Estendi a língua, engoli. Nos empurravam em volta, tentei protegê-lo com meu corpo, mas ai-ai repetiam empurrando, olha as loucas, vamos embora daqui, ele disse. E fomos saindo colados pelo meio do salão, a purpurina da cara dele cintilando no meio dos gritos.
Veados, a gente ainda ouviu, recebendo na cara o vento frio do mar. A música era só um tumtumtum de pés e tambores batendo. Eu olhei para cima e mostrei olha lá as Plêiades, só o que eu sabia ver, que nem raquete de tênis suspensa no céu. Você vai pegar um resfriado, ele falou com a mão no meu ombro. Foi então que percebi que não usávamos máscara. Lembrei que tinha lido em algum lugar que a dor é a única emoção que não usa máscara. Não sentíamos dor, mas aquela emoção daquela hora ali sobre nós, eu nem sei se era alegria, também não usava máscara. Então pensei devagar que era proibido ou perigoso não usar máscara, ainda mais no Carnaval.
A mão dele apertou meu ombro. Minha mão apertou a cintura dele. sentado na areia, ele tirou da sunga mágica um pequeno envelope, um espelho redondo, uma gilette. Bateu quatro carreiras, cheirou duas, me estendeu a nota enroladinha de cem. Cheirei fundo, uma em cada narina. Lambeu o vidro, molhei as gengivas. Joga o espelho no mar pra Iemanjá, me disse. O espelho brilhou rodando no ar, e enquanto acompanhava o vôo fiquei com medo de olhar outra vez para ele. Porque se você pisca, quando torna a abrir os olhos o lindo pode ficar feio. Ou vice-versa. Olha pra mim, ele pediu. E eu olhei.
Brilhávamos, os dois, nos olhando sobre a areia. Te conheço de algum lugar, cara, ele disse, mas acho que é da minha cabeça mesmo. Não tem importância, eu falei. Ele falou não fale, depois me abraçou forte. Bem de perto, olhei a cara dele, que olhada assim não era bonita nem feia: de poros e pêlos, uma cara de verdade olhando bem de perto a cara de verdade que era a minha. A língua dele lambeu meu pescoço, minha língua entrou na orelha dele, depois se misturaram molhadas. Feito dois figos maduros apertados um contra o outro, as sementes vermelhas chocando-se com um ruído de dente contra dente.
Tiramos as roupas um do outro, depois rolamos na areia. Não vou perguntar teu nome, nem tua idade, teu telefone, teu signo ou endereço, ele disse. O mamilo duro dele na minha boca, a cabeça dura do meu pau dentro da mão dele. O que você mentir eu acredito, eu disse, que nem na marcha antiga de Carnaval. A gente foi rolando até onde as ondas quebravam para que a água lavasse e levasse o suor e a areia e apurpurina dos nossos corpos. A gente se apertou um conta o outro. A gente queria ficar apertado assim porque nos completávamos desse jeito, o corpo de um sendo a metade perdida do corpo do outro. Tão simples, tão clássico. A gente se afastou um pouco, só para ver melhor como eram bonitos nossos corpos nus de homens estendidos um ao lado do outro, iluminados pela fodforescência das ondas do mar. Plâncton, ele disse, é um bicho que brilha quando faz amor.
E brilhamos.
Mas vieram vindo, então, e eram muitos. Foge, gritei, estendendo o braço. Minha mão agarrou um espaço vazio. O pontapé nas costas fez com que me levantasse. Ele ficou no chão. Estavam todos em volta. Ai-ai, gritavam, olha as loucas. Olhando para baixo, vi os olhos dele muito abertos e sem nenhuma culpa entre as outras caras dos homens. A boca molhada afundando no meio duma massa escura, o brilho de um dente caído na areia. Quis tomá-lo pela mão, protegê-lo com meu corpo, mas sem querer estava sozinho e nu correndo pela areia molhada, os outros todos em volta, muito próximos.

Fechando os olhos então, como um filme contra as pálpebras, eu conseguia ver três imagens se sobrepondo. Primeiro o corpo suado dele, sambando, vindo em minha direção. Depois as Plêiades, feito uma raquete de tênis suspensa no céu lá em cima. E finalmente a queda lenta de um figo muito maduro, até esborrachar-se contra o chão em mil pedaços sangrentos.

terça-feira, 6 de agosto de 2013

Ao senhor M.F.B.

Posso não ver poema
na singeleza do olhar
bobo.
Nas expressões, que ora sim
ora não, parecem vazias.
Mas vejo o poema,
não na essência, mas
na simplicidade
da compreensão de ti.
Belo, com os olhos vertentes de escuridão,
negros como a noite sem luar.
Na pele das origens do nosso povo
rico.
No andar meio moleque
entre o descuido e a pretensão.
Eu posso ver o poema
no certo desejo, que entretém
algumas e alguns, entre os anjos.
Do teu Deus, ou o meu
vejo o poema nos caminhos
que cruzaram-se
despretenciosamente
na mais culta, e lasciva
demonstração da volúpia humana.
Vejo o poema em ti,
no certo ou no errado,
no que me mantém acordado
a noite, lembrando dos seus olhos
negros como a noite sem luar.