sábado, 19 de maio de 2012

Camaleão


Este seria o último dia normal da minha vida. Dormi, acordei, trabalhei, almocei, trabalhei, jantei, bebi, ouvi música, assisti um filme qualquer que estava perdido na estante, li um trecho de um novo livro, melhor dizendo, o livro não é novo, mas o meu exemplar sim. E fui me deitar. A noite seria comum, exceto por um detalhe. Naquela noite me transformei pela primeira vez.
Eu sempre odiei répteis, anfíbios, insetos, crustáceos e essas coisas nojentas, mas quando me dei conta, uma cauda estava crescendo em mim, verde e cheia de rugas e esporas estufadas para fora da pele. Logo as pernas começaram a mudar de forma. E não sentia dor. Era tudo normal e higiênico. Não havia nenhuma troca de pele. Como mágica as partes do meu corpo foram ficando verdes, a minha língua cresceu em cinco minutos, 40 centímetros, e o meu céu da boca quase foi parar no teto do crânio.
Os meus olhos se mexiam sozinhos, e a sensação que tinha era de que podia ver duas televisões ao mesmo tempo, em canais diferentes. Olhava as duas paisagens dos quadros pendurados, um em cada parede do quarto. Logo, enquanto um olho ficou admirando a paisagem, o outro saltou para ver a imagem de Maria ao lado de Jesus na cabeceira a frente da cama.
Os meus braços não se mexiam como antes, e eu já não conseguia dormir de barriga para cima, fiquei ali parado de pé, sobre quatro patas rústicas e verdes. As orelhas se avermelharam, e eu corri até o espelho. Era um camaleão.
Dali em diante, durante todas as noites a transformação se repetiria. E eu me acostumaria. Como estou agora. Contudo, algumas coisas me fizeram sofrer, com as transformações indesejadas, quase fui internado em um hospício ao procurar um médico, e um padre me fez ler um ritual de exorcismo. Não podia mais ir a festas, nem a bailes. Dançar a noite toda era impossível com uma causa do tamanho do meu corpo. Não podia sair à rua. Pois seria tomado pelas autoridades competentes, e no outro dia preso por seqüestrar um animal raro e me colocar no lugar dele.
A vida havia mudado para mim.
Queria pensar um lado bom para essas mudanças. Queria entender porque essas mudanças me permitiram, enxergar mais e falar menos, mesmo que houvesse uma língua grande, que eu evitava colocar para fora da boca, pois grudava em tudo. Aprendi a ouvir mais.
Ouvi mais música. Li dois livros ao mesmo tempo. Mudei de cor. Do verde para o azul, para o amarelo, para o marrom, para o vermelho.
Porque eu mudei tanto? Porque eu posso ainda mudar mesmo depois de mudado? Essa metamorfose que se encaminha todas as noites, com a vinda da lua, me fez pensar, o porquê de mudanças serem boas. Porque as pessoas seguem caminhos distintos, se ainda se amam e querem ficar juntas.
Porque as belezas da arte se transformam com o tempo. Porque tudo se transforma. Porque o mundo se transforma todo o tempo. Porque as transformações são necessárias. Porque lembramos do passado que desdenhamos há muito tempo com saudade. Nós escolhemos isso.
Como camaleão, pude ficar invisível diante das cores de qualquer ambiente e penetrar em diversas vidas. Pude ouvir pensamentos ínfimos e profanos, sedentos de amor, ódio, saudade, esperança, tristeza, alegria, e uma vontade imensa de mudar, de ser invisível ao mundo, como eu, como um camaleão qualquer.

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