sábado, 19 de maio de 2012

As divagações de Oliver


Aquele menino sempre fora estranho, se recolhia no meio dos outros, se encolhia quando via muitas pessoas, falar em público era um problema, na verdade, o simples ato de falar era um milagre, não chorava, não sorria, não era possível vê-lo triste, Oliver não expressava nada. Seu rosto era apagado como o de um fantasma. 
Era um problema conhecer seus pensamentos, pois não tinha amigos, não conversava com ninguém, desde pequeno os professores achavam o comportamento doentio. Oliver ia frequentemente a médicos, psiquiatras, psicólogos, mas todos diziam a mesma coisa, o menino está normal. Não há com ele nenhum problema. Os sinais vitais estão bons, as taxas sanguíneas também, a mente funcionava perfeitamente.
Oliver não falava com a mãe, nem na hora de pedir comida.
Oliver apenas apontava. Quando via um copo com água e estava com sede, erguia o braço fino e esticava o dedo em direção ao objeto.
A mãe rezava, não ficava brava com o menino, pois ele nada fazia, ela pensava que ele na verdade nunca aprendera a falar, por algum golpe divino, algum pecado que ela cometeu e que Deus nunca a perdoara, por isso o filho nasceu assim, meio tonto.
Oliver sequer se sustentava em meio as pessoas, não fazia esforço nenhum, gostava de ficar sozinho. O que acontecia com o menino?
É difícil pensar como uma mãe pode achar o filho meio tonto, até porque não é coisa que se pense, não existe meio tonto, ou é tonto inteiro, ou não é.
Havia uma explicação para aquilo tudo. Durante a noite, Oliver se levantava e falava sozinho, até cansar, sobre tudo o que acontecia com ele durante o dia. O menino não sabia se expressar na frente dos adultos, mas usava as palavras com uma sabedoria imensa. Já diz o ditado, não tem nada há falar de bom, cale a boca. Não sei se isso é ditado de gente. Todavia já o ouvi de muitas bocas.
Conversava com seu amigo imaginário, contava tudo a ele. Seu nome era Miguel. Era um menino loiro, tinha entre 16 e 17 anos. Oliver não sabia ao certo. Tinha olhos azuis e uma feição amena, parecia bondoso, e era. Na sua mente existiam apenas imagens de flores e paisagens, algumas histórias de um mundo distante, Miguel se sentava numa cadeira de balanço velha, comida pelas traças numa das pernas, e com um dos apoios de braço torto.
A cadeira rangia. Oliver pensava em coisas como o sol nascendo, a lua se pondo, as flores se abrindo, e seu coração pulsando, queria saber como o mundo funcionava. Porque as pessoas conversavam tanto? Não tinha nada a dizer. Apenas observava. Por isso era calado, não conversava com a mãe, porque em certo momento da vida tinha medo de que ela ficasse brava com ele, por nunca ter falado antes, e isso só se prolongava.
Esse não era o único motivo para falar, ele tinha medo da mãe, se assustava quando ela estava a bordar com as amigas nas quintas feiras a tarde, servia o chá, calado. E a mãe, segurando um cigarro esbravejava a fumaça por todos os cantos da sala. Fofocava. Falava da vizinha, da tia, da sogra, da irmã e quiçá da mãe em alguns momentos.
Miguel conversava com Oliver sobre coisas que a ele interessavam. As histórias do Capitão América que lia todos os dias nos quadrinhos velhos da biblioteca da casa do senhor Manoel, da esquina. Ele tinha tantos livros. Oliver ficava perdido. Interiorizava-se nos pensamentos e viajava, conheceu dentro daquela sala o centro da terra, os dinossauros, as flores, os vampiros e lobisomens, mas o que mais encantava o menino era sem dúvida aquela figura com um escudo de estrela.
Miguel sabia de todas as histórias, e por isso Oliver gostava de conversar com ele.
Oliver e Miguel eram mais que amigos, havia entre eles uma relação estreita, era como se um fio de seda saísse do coração de um e se prendesse ao outro.
Não havia romance entre os dois, só uma bela amizade. Oliver tinha os olhos pretos como jabuticabas maduras e brilhavam no escuro como os olhos de um felino. As mãos delicadas e perfeitas, o corpo magro, a pele branca, e os cabelos negros. Na cabeça, pensamentos que flutuavam num mar de perdições imaginárias. Ora passavam pelos olhos de Oliver como trens, ora apareciam como flashes de sua criatividade aparente.
Que Oliver não falava era fato. Mas no seu quarto, haviam esculturas de barro e pinturas que deixariam qualquer adulto formado em arte impressionado.
A mãe reconhecia o talento do filho, e tentava a qualquer custo vender as obras dele na venda do tio, numa esquina de um bairro pobre da cidade, prometendo a ele parte do dinheiro. Oliver nunca concordou.
As pinturas retratavam o rosto e o corpo de Miguel. A mãe conhecia a solidão do filho, então pensava naquilo como pura imaginação infantil. Como Oliver nunca tinha dito nada, para a mãe ele ainda era uma criança inocente. 
Quando pintava, as imagens se criavam nas tintas, nos pincéis e nas telas que sempre ganhava de presente da mãe.
Miguel era cada vez mais real, as pinturas davam vida a aquela figura imaginária.
Um dia, Oliver brigou na escola. Chegou com raiva em casa. Ignorou Miguel e sua voz doce. Cobriu-se e tentou dormir. Conseguiu em certo momento. Depois que Miguel desligou a matraca.
No sonho, ele estava andando em um campo verde, parecia um pasto que tinha visto outro dia no passeio com o tio, só que desta vez sentiu o cheiro doce e verde da grama. Conseguiu tatear algumas margaridas que brotavam em meio ao capim, viu os cavalos correrem, e Miguel aparecer. 
Correu em direção ao menino, como se fosse seu irmão mais velho, tentava abraçá-lo.
Miguel sorria calmamente para Oliver. O aceitou com seus braços, e seu queixo pousou em cima da cabeça de Oliver.
Os dois ficaram ali por alguns minutos.
...
- Oliver! Oliver! Acorde! Tem que ir o dentista hoje!
Oliver odiava o dentista, ficava tentando fazê-lo falar a qualquer custo. Foi. Voltou. Ficou em casa, na cama, ouvindo música, estirado, parecia esperar que alguém batesse a porta. Na verdade, não conseguia parar de pensar no sonho. Sentia-se tão bem, olhava para a cadeira de balanço feita pelo avô, já falecido. E pensava em Miguel.
Não sabia se ia esquecer o sonho tão cedo. Os pensamentos corriam como nunca, pintou um abraço, escondeu-o no meio do caderno para que a mãe não visse.
Olhou para o teto do quarto, sua mente viajou pelo infinito, ouvia o ranger da cadeira de balanço, viu uma flor rosa voar para dentro do quarto com o vento. Era uma flor de macieira, havia uma no quintal, e como o quarto de Oliver ficava na parte superior da casa, era fácil ver o vento empurrar folhas para dentro do quarto. Oliver não se incomodava. Gostava de sentir o cheiro das flores aromatizando seu leito noturno. No agradável calor da tarde Oliver imaginava o abraço.
Dormiu. Acordou.
Foi à loja de música no outro dia, estava fechada. Foi, então, para a biblioteca do senhor Manoel, era domingo e não tinha absolutamente nada para fazer, não havia mais conversado com Miguel. Ele não aparecia há dias.
Tentava passar o tempo, mas o hábito de conversar com Miguel a noite só estava piorando as coisas, agora, além de não dormir, estava sozinho.
Caminhando para a escola no outro dia, viu Miguel descendo do ônibus, começou a pensar em milhões de possibilidades para sua visão. Miguel era real todo esse tempo? Será que estava com tanta saudade daquele amigo distante que o estava vendo em outros lugares.
As perguntas foram respondidas pela professora de português na sala. Um aluno novo, chamado Gabriel havia entrado na turma.
Oliver estava preocupado, os cochichos voavam para cima do menino bonito, sobre sua esquisitice. Queria se aproximar do menino, mas como sem falar? Olhava diretamente para Gabriel, sonhava com um abraço carinhoso. Era isso, Miguel saiu dos sonhos para entrar de vez na vida de Oliver.
Oliver ainda estava tentando ser sensato.
Observava, mas não conseguia distinguir nenhuma diferença aparente, o coração latejava, as pupilas se abriram de tal forma que a luz que atravessava a janela quase impediam o menino de copiar a matéria escrita no quadro.
Gabriel era Miguel, ou Miguel era Gabriel, que confusão!
Oliver nada disse naquele dia, as expressões noturnas sumiram também.
Oliver rezou, pela primeira vez.
No outro dia, novamente, tentava ser normal, mas não conseguia, na aula de educação física, Gabriel não quis jogar futebol com os outros meninos. Oliver treinava seu xadrez sozinho, como sempre. Gabriel se aproximou, parou na frente de Oliver.
Levantou o braço com os pelos aloirados e movimentou os dedos compridos em direção ao primeiro peão do lado adversário de Oliver.
Sentou-se
Curvou a coluna e apoiou o queixo nas mãos.
Oliver disse pela primeira vez.
-Quer jogar?
A professora assustada ligou imediatamente para a mãe. 
O jogo seguiu, Gabriel movimentava as peças com cuidado, Oliver tremia, o jogo começou a ficar emocionante, a professora parou ao lado, meio distante, tentando observar tudo, para ver se conseguia ouvir mais alguma palavra.
Gabriel levantou a mão em direção a rainha e apontou o caminho para o rei de Oliver.
- Xeque!
Oliver mudou um peão de lugar e livrou-se da jogada, todavia o cavalo de Gabriel estava posicionado.
- Xeque!
Oliver não via mais saída, moveu a rainha, e a perdeu, Gabriel moveu um peão, Oliver comeu o cavalo com o rei. Livrou-se do xeque aparente. Gabriel moveu um bispo, deixando Oliver a um peão da perda. Oliver moveu o cavalo. Gabriel moveu outro bispo deixando Oliver em xeque novamente. Oliver, estava sem saída, não havia mais o que fazer, bastava se render. Moveu um peão.
- Xeque mate.
Oliver sorriu, e Gabriel também. A professora estava atenta. Os dois se abraçaram. Gabriel era bem mais alto que Oliver, pousou queixo na cabeça do menino.
- Não se preocupe, estou aqui.
Oliver deixou cair uma lágrima, anos de solidão haviam acabado.
Miguel existia, ficaram amigos, conversaram, Oliver falava em casa agora, quando a mãe perguntava, porque nunca tinha falado nada antes, Oliver respondia que não conseguia.
Um dia saíram juntos, três anos depois, Gabriel tinha 20 anos, Oliver 18.
E naquele dia, as margaridas do campo dos sonhos de Oliver foram vistas de novo.
O que Gabriel tinha na cabeça? Ainda hoje é uma dúvida. Os dois ficaram amigos. Gabriel e Oliver passaram muito tempo juntos, todos os dias, entraram juntos na faculdade, no mesmo curso, se formaram, são professores na mesma escola, que é deles. Moram juntos. São amigos. Apaixonados um pelo outro, a cada dia a paixão é renovada, Oliver nunca mais se calou, mas não abria a boca fácil, ele era quieto por natureza. Quando olhava Gabriel, as palavras se transportavam pelo ar, através de seus olhos negros brilhantes.
Oliver se casou, têm dois filhos, um deles não fala.
Gabriel se casou, têm duas filhas, uma delas nunca disse uma palavra.

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