segunda-feira, 6 de agosto de 2018

Espetáculo Mazelas




O espetáculo Mazelas trata da vida de um Morador de Rua, e das causas que fizeram ele viver nessa condição, na extrema pobreza, lutando pela liberdade e pela fuga de um mundo doente e triste, individualista e (des)conectado.

O texto é livre, para qualquer Cia de Teatro que queira usá-lo. Basta avisar que ele será encenado, para que possamos registrar. Não é necessário o pagamento de Direitos Autorais para utilização desse texto em Espetáculos teatrais, desde que sejam dados créditos.


Fotos de Edmilson Luiz Perrota









Cena 1

Porra, que frio bicho. Toda dia essa merda, todo dia essa merda. Eu to tão cansado de olhar pro lado e não enxergar nada. Todo mundo passa aqui ó, todo mundo, acho que o mundo inteiro passa aqui, mas nada acontece. Porra, que frio bicho! Aqui é costume já, quando um ganha uma blusa deixa a velha na rua pra outro pegar. Essa gente insensível. Cada dia uma morte diferente, é só isso que é, vem uns poetinha de merda me entregar folheto de poesia. Pô cara, essa porra não enche barriga não... Eu acordei com fome já. Só comi o almoço ontem. É um dia assim, outro também, a gente vive com o que tem, com o que consegue. E não é sempre. Daí, o dia vem, a gente acorda assim. Na rua preso...

Cena 2

O moça, dá uma moedinha aí. O moço, consegue um café aí uma coisa pra eu comer? Eu não vou usar droga não. Não, não vou não... Pode deixar, deus abençoe aí o dia do senhor. A gente é assim, tem que ficar na rua, preso. Não tem onde dormir não. Comer de manhã é privilégio de quando você conhece o dono do boteco do bairro ali, aí tu vai lá de manhã, ele te dá aí um café, um cigarro. Moço, dá um cigarro? É... tem um cigarro aí? Você pode acender pra mim? Obrigado viu...  Quando você pede cigarro não pode falar deus abençoe né? Que daí você tá dizendo pro cara que deus abençoa uma coisa que faz mal né ... Pro resto tem que dizer sabe. Eu tenho uma coisa com deus que é meio engraçada assim. Eu acredito em tudo. Em deus, em oxóssi, em buda, em reencarnação, na coisa ai dos pensamento positivo, que se você vê você sente você tem. Isso um pouco menos né ... ou não, porque eu sinto fome todo dia ... Deus é engraçado sabe, eu gosto de Jesus, mas o problema é que tem muita coisa errada, muita gente que fica falando coisa de jesus que não tem a vê não. A gente fica nessa cara de ouvir essas merda e ficar quieto, porque discutir com essa gente não adianta entendeu? Você quer provar que o cara só falou de amor, mas eles não tão nem aí, amor é na conta do banco só. Essa gente aí não tem amor por ninguém não, acho que nem por eles mesmos. Coitado do jesus cara, se voltasse hoje, ia ser a mesma coisa, defender puta, bandido e viado.

Solte barrabás
é vagabundo não gosta de trabalhar
Solte barrabás
Tem que matar pra resolver isso
Solte barrabás
Atearam fogo num mendigo lá em são paulo
Solte barrabás
Ahn porque tá na rua porque quer
Solte barrabás


Quando na verdade jesus só falou duas coisas, e tudo que ele dizia era isso, fica na tua e ama os outros mano.

Cena 3

A verdade é que essa história de jesus aí, de deus nunca ajuda nada não... sabe, eu faço deus abençoe porque se eu não falar o povo me chama de mal agradecido ainda. Putz cara, minha perna ta doendo hoje... Eu cortei ontem tive que fugir duns policia aí. Os cara queria levar meus pano ....  Porra, você me machucou, você me machucou, você me machucou, dá licença, relaxa o caralho, vai toma no rabo, sai, sai, aio, [choro], vai leva meus negócio tudo, num leva meus bagulho não porra, num leva meus baguio não caramba, num tenho nada porra, me solta, por favor, ali tem roupa de frio, por favor, não leva meus baguio não, me solta. Os cara queria levar meus pano .... aí cortou, mas normalmente sara sozinho né... eu dei uma lavada só Essa porra tá infeccionada. Agora fodeu. Tem que ir no posto ali. Mas aí  já viu o jeito que os cara trata a gente né. Na base do soco.

Fecha-se o palco. O vídeo completa parte da cena. Voltamos ao palco, já com uma garrafa na mão.

Cena 4

Hoje eu estive no passado...

O vídeo volta no tempo, e mostra a juventude.

TRANSE

No entanto o dia some,
e risos e abraços...
e a luz em minha alma.

Desaparecem os sóis;
um deles era a avó que me cuidou
e o outro era o calor,
que um dia tomou meu coração.
E dele veio a amargura da paixão.
E um gélido lunar me invade,
me inunda, em peixes e polvos e tentáculos
de esperança.

Se hoje o dia some
deixando para trás escuridão e dor,
há apenas o tempo a caminhar
por estradas longas de esperança.

Se até a volúpia falta,
falta também o sonho de um dia novo.
De sóis e calor...
De novos amores e menos solidão
a fazer espaço em meu peito
esperança, companhia e vastidão


Cena 5


E aí? Como estão os pedaços disso tudo? Eu não posso amar ninguém não. Fico aqui preso na rua. Eu escolhi isso. Eu não aguentava mais aquilo. Era ser maltratado o dia todo, pelo menos aqui ninguém me nota, ninguém me vê... Eu to cansado, mas não tanto, dá pra continuar ainda. Desde que eu falei pra eles que eu gostava de homens, o mundo virou de cabeça pra baixo .. acabei decidindo morar na rua. Mas é um tanto quanto difícil a vida. Ainda é melhor do que ser humilhado todo dia. Eu to muito cansado de tanta hipocrisia. Tipo, hipocrisia mesmo ... é difícil ... Eu vejo que as pessoas estão se distanciando, mas ao mesmo tempo conectadas. Elas se mostram diferentes... Tá todo mundo violento. Eu quero ir embora na verdade.  Eu acho mesmo que eu quero é trabalhar no campo, ficar lá numa casinha qualquer. Cuidar do que planto pra comer...

TRANSE

Talvez o amor não exista, talvez a simples menção ao amor eterno, a conjuração de uma sociedade que ama e convive pacificamente, a transformação do corpo e da alma em algo bom. Talvez tudo isso não exista. Talvez não exista o bom, o deus, o anjo, o sonho. Talvez, eu esteja sempre despreparado, sempre sozinho, sempre triste e preso em lamúrias de expressão e dor. Talvez eu apenas queira ver um olhar sorridente, mas é pedir muito. Talvez eu apenas queira ver um beijo nascendo do alto de meu semblante, que se formaria contente, e que deixaria escapar um sorriso verdadeiro pela primeira vez. Talvez eu queira apenas algo simples, e desejoso. Talvez eu pense melhor em ser o mais perfeito e tenro companheiro que alguém possa querer. Mas aí vem o Talvez e joga tudo pro alto, e abandona aos olhos do destino algo que talvez nunca acontecerá levando inclusive consigo as esperanças de um mundo melhor. E aí eu digo: Talvez o amor não exista. Talvez é uma quase certeza, talvez que se forma esperançoso, porque eu não quero destituir-me de vez. Talvez sinta o que emana das pessoas, e veja também dentro delas esse desespero angustiado, e talvez eu apenas sonhe em ser uma pessoa realmente melhor, e talvez eu queira me doar aos outros para me sentir menos pior. Talvez eu beije o meu próprio corpo na busca de carinho, talvez eu siga o caminho escuro, talvez eu afronte todo mundo, talvez eu peça desilusão, desrespeito, desamor. Talvez eu apenas queira um abraço. O seu abraço, o seu sorriso, o seu respeito. Talvez eu peça para não me abandonar, mas esse talvez já foi. Você me abandonou, todo mundo me abandonou, e eu não queria me abandonar, mas talvez eu faça. Porque talvez tudo que eu sempre desejei foi ser desejado. E de talvez em talvez isso nunca aconteceu, e eu continuo aqui, pensando e pensando e chorando e refletindo, que talvez, mas só, talvez. Diante de todo esse mundo desesperado e triste e amargurado e violento e egoísta, diante dessas pessoas que agora estão aqui abandonadas me ouvindo, me lendo, me vendo, talvez essas pessoas que nesse único momento estejam sentindo algo, porque quando esse texto acabar, o talvez acabará e ela-ele, voltará ao seu egoísmo. Porque talvez essa pessoa seja o próprio amor desalmado, o próprio cupido criado pelo demônio. O próprio demônio? Talvez? Quem sabe? cade deus agora? Talvez, ele não exista. E se deus é amor, bem. Talvez, só talvez... talvez o amor não exista.


Cena 6


Apareceu esses dias um cara, um patrão aí. Um cara bom até. Ele pediu meu nome pra me chamar pra ir morar numa chácara dele. Ser um caseiro ... eu cuido lá, e ele me dá essa casa de graça. Eu só vou ganhar salário pra comer mesmo, mas não vou precisar pagar conta nenhuma sabe... Tipo caseiro assim... Eu só vou ter que ficar lá. É melhor que muito escravo por aí que ganha pra comer e trabalha que nem condenado a semana inteira, contando os dias pra chegar a sexta feira, como se não fosse se foder no sábado e no domingo também. Porque pobre só se fode. É quase crime ser pobre, mas é um crime obrigatório, porque é crime e condição. A gente enche o saco. Acorda minha gente. Vocês já moram na rua, vocês só não sabem ainda. É dor, é racismo, é homofobia, é desigualdade, é fome, é miséria, é corrupção, é violência, é roubo, é morte, é tortura, é prostituta sendo espancada, é gente que precisa de remédio e num tem, é morte, é tristeza, é depressão, é luto, é essa gente toda, escrava da liberdade.

Eu fico preso aqui, na rua. Junto com vocês.
A gente fica assim, na rua preso
A gente fica assim, na rua preso
A gente fica assim, na rua preso
A gente fica assim, na rua preso
...                                                                                                          

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